quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Uma curva

Pronto! Estava acabado! Chegara em casa. Estava sozinho e com as roupas ensopadas por conta do temporal que caia lá fora.

Havia um ar de definitividade em cada um dos degraus da escadaria do prédio que subia enquanto pensava o que havia sido de seu casamento. Paixão arrebatadora nos primeiros anos. Uma grande ternura nos seguintes. Não sabia explicar o que acontecera. Por que evitara tanto sua esposa nos últimos anos?

Assim era Sofia. Sempre bem vestida. Cabelos arrumados e um lindo sorriso nos lábios carnudos. Cozinhava divinamente. As roupas e casa sempre limpas e cheirosas. Era divertida. Tinha um excelente senso de humor. Era uma das mulheres mais inteligentes que já conhecera. Era linda, sensual, independente e sagaz.

O que aconteceu com seu casamento? Por que se transformara naquela relação “sem sal e sem açúcar”, como definiu?

Chegou exausto ao topo da escada. Esbaforido. Roupas quase secas. Sentou-se no degrau e lembrou-se da noite sem luz em que fizeram amor loucamente no topo daquela mesma escada após “escalarem” os mais de 800 degraus até o décimo sétimo andar. “Estou ficando velho”, pensou.

Resolveu entrar em casa. Olhou as fotos em cima da estante. Sofia era realmente linda! Tudo estava em perfeita ordem, como sempre. Um vaso de Gérberas em cima da mesinha do canto. Só agora se lembrava o nome das flores preferidas da esposa. Se ao menos tivesse se lembrando antes.

Foi à cozinha e tentou se lembrar por que não tiveram filhos. Ele não quis. Embora ela adorasse crianças e lhe pedisse o tempo todo, ele não quis. Trabalhava demais, precisava lavar o carro aos sábados, e tinha os jogos de futebol ao domingos. Não tinha tempo para isso. Não tinha tempo para ela.

Sentiu frio e lembrou-se das roupas molhadas por causa da chuva. Decidiu tomar um banho “para não ficar doente” teria dito Sofia.

Dirigiu-se ao quarto e parou hesitando entrar. Abriu vagarosamente a porta como que para não acordá-la. Ela não estava lá. Ele sabia, mas tinha esperanças. Olhou a foto no criado mudo e lá estava ela, linda e sorrindo como sempre.

O cheiro adocicado de seu perfume penetrou em seus pulmões, e pela primeira vez desde que descobriram a doença, ele chorou. Chorou como uma criança a espera do retorno da mãe. Chorou copiosa e compulsivamente.

Acalmou-se. Abriu o chuveiro. A água quente escorrendo pelas costas. Ao redor, tudo tinha uma “pitada” de Sofia. Enquanto escutava a chuva e a água do banho caírem, lembrou-se do amor, das brigas, das reconciliações. Só agora percebia o quanto a amava. Sim. Ele a amava. Não havia mais a volúpia dos primeiros anos, mas havia carinho, compreensão, seu calor, sua companhia. Havia amor, e ele não soube entender. Ele não sabia o que era amar e foi necessário que um câncer a levasse para que percebesse isso.

Ele queria dizer que a amava, mas ela sabia, e ele sabia que ela sabia.

No último dia de Sofia ele tentou dizer-lhe, mas ela não quis ouvir suas desculpas. Apenas disse uma frase de Fernando Pessoa: “A morte é uma curva na estrada. Morrer é apenas não ser visto”.

Depois, fechou os olhos e com seu sorriso costumeiro, partiu.

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